Por Dário Bossi
10/03/2016.
Os Ka’apor do Maranhão levantaram a voz. Por isso querem amordaçá-los.
Cansados de esperar que o Estado os defenda e garanta proteção para eles e a floresta, organizaram por sua conta“missões” de controle da reserva em que vivem.
Vigiam sobre os acessos à sua terra e surpreendem os madeireiros
que a invadem e saqueiam, protegidos e aliados a políticos e empresários
locais. Quando os índios os descobrem, apoderam-se de suas motosserras,
incendeiam seus caminhões e os expulsam de suas terras, declaradas Kaar
Husak Há, isto é Áreas Protegidas.
Eusébio Ka’apor era um dos defensores da terra indígena. Mataram-no com
dois tiros nas costas, no final de abril, pouco distante de sua aldeia.
No Brasil as vítimas da violência em terra indígena nesses últimos anos
aumentaram com a mesma proporção da arrogante bancada ruralista.
O que esperariam os Ka’apor da encíclica Laudato Sí de Papa Francisco? Será preciso lê-la do ponto de vista deles e de muitas outras vítimas da violência ambiental.
Nós missionários combonianos faremos dela instrumento de estudo
popular da realidade, com as comunidades cristãs junto às quais vivemos.
Muitos estão esperando por essa encíclica. Sobretudo as comunidades e igrejas perseguidas por seu empenho emdefesa da Criação e
em conflito com os grandes projetos nas regiões amazônicas: mineração,
monoculturas, hidrelétricas e barragens, infraestruturas para a
exportação de commodities... Chamados “projetos de desenvolvimento”,
revelam rapidamente o interesse quase exclusivo de desenvolver os
capitais de quem investe nisso, provocando graves violações dos direitos
socioambientais às populações locais e criminalização dos líderes
populares que a eles se opõem.
Um dos motivos da criação da rede latinoamericana Iglesias y Minería,
por exemplo, foi exatamente evitar o isolamento das comunidades mais
empenhadas nessas frentes e demonstrar apoio moral, político e
institucional da Igreja a seu lado. Esse talvez será o efeito prático
mais imediato e importante de Laudato Sí.
Esperamos que essa encíclica confirme uma posição clara da Igreja ao
lado das vítimas do assim chamado “racismo ambiental”. Desejamos que,
ao denunciar os riscos da sobrevivência do Planeta, o documento seja
solidário às comunidades mais pobres. Essas são de um lado as vítimas
maiormente atingidas por essa violência e, do outro, em muitos casos,
indicam-nos caminhos de preservação da vida e de organização de
economias a baixo impacto ambiental nos territórios.
Em muitos países está sendo implicitamente declarada uma guerra
de baixa intensidade, disputando territórios e bens naturais. A história
se repete no estilo das antigas colônias, como bem demonstra o saudoso Eduardo Galeanoem “As veias abertas da América Latina”, mas com ritmos e tecnologias bem mais impactantes, chegando assim a violar também os direitos das futuras gerações.
O espírito consumista e o sistema capitalista crescem a uma
velocidade exponencial; outros modelos de vida que com dificuldade
resistem à agressão deles observam-nos com angústia e incompreensão,
definindo-os, lucidamente, “sistemas suicidas”. Desse ponto de vista, a
leitura de Laudato Sí poderia ter profundas implicações
político-econômicas.
As comunidades que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho define
“indígenas e tribais” representam ao nosso ver um “baluarte” (Kaar
Husak Há). Assim como ao longo da história as fortalezas protegeram
inteiros territórios das invasões e frearam o controle inimigo dos
territórios, da mesma forma o direito à autodeterminação das populações
locais pode ser uma estratégia, hoje, para evitar a entrega
indiscriminada dosbens comuns às corporações mineiras ou às multinacionais da comunicação, da água ou das grandes cadeias de produtos alimentares.
A Igreja deveria apoiar com força o direito à “consulta prévia, livre e informada” das comunidades locais, assim que seja garantido o autocontrole de seus territórios.
A Red Eclesial Panamazónica comprometeu-se
nesse sentido em diversos Países da América Latina. Articula
comunidades cristãs de base, grupos e instituições religiosas e as
conferências episcopais da grande Amazônia, com especial atenção aos
direitos dos povos indígenas e com uma interessante proposta de
colaboração permanente com a Comissão Interamericana dos Direitos
Humanos.
A visita de Papa Francisco a Washington em setembro, poucos meses
depois da publicação da Encíclica, poderá tocar também esses temas
delicados e urgentes.
Em chave de política internacional, a encíclica poderia ser oportunidade para relançar a proposta de criação de umaCorte Penal de Justiça Ambiental.
Hoje, de fato, não existem adequados mecanismos de responsabilização em
nível internacional por crimes ambientais. Assim, mesmo em caso de
graves violações desses direitos, as multinacionais e os governos
locais, vinculados entre si por acordos e interesses econômicos, acabam
praticamente impunes.
Sobretudo, esperamos que o documento vaticano sobre ecologia ofereça
uma releitura teológica das referências bíblicas que ao longo da
história, por interpretações patriarcais e colonizadoras, separaram a
Criação do homem, considerando esse último o dominador e controlador da
vida.
Sabemos quanto o sistema capitalista, ecocida e suicida, herdou
da cultura religiosa cristã. Por outro lado, temos a inspiração
radicalmente evangélica de São Francisco e o testemunho vivo de muitos e muitas mártires que nos relançam em defesa da vida.
Precisamos igualmente de um profundo e humilde processo de
conversão e purificação. Uma nova escuta da Revelação, a partir do
encontro fecundo entre a Palavra bíblica, o livro da criação e a
sabedoria dos povos e das religiões.
Fonte: IHU
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