quarta-feira, 11 de novembro de 2015

A obscura ameaça de privatização das águas

Açude de Orós (CE), um dos mais tradicionais do país. Empresas concessionárias poderão deixar de abastecer populações e vender “sua” água para agronegócio

Por Roberto Malvezzi (Gogó)
Esses dias fui entrevistado pela Folha de São Paulo sobre uma nova investida da Agência Nacional de Águas para a criação do “mercado de outorga de águas”. O assunto é antigo e, vez em quando, se mexe no túmulo.
A proposta vem do Banco Mundial e FMI para a criação do mercado de águas como a melhor forma de gerir a crescente crise hídrica global. Como no Brasil a água é um bem da União (Constituição de 1988) ou um bem público (conforme a lei 9.433/97), ela não pode ser privatizada, nem mercantilizada.
Acontece que há tempos o grupo que representa o pensamento dessas instituições internacionais no Brasil – e das multinacionais da água — busca brechas na lei para criar o mercado de águas, pelo mecanismo de compra e venda de outorgas. Já que a água não pode ser um bem privado, então busca-se criar o mercado das outorgas (quantidades de água concedidas pelo Estado a um determinado usuário), para que possam ser vendidas de um usuário para outro.
Hoje, o mercado de outorgas é impossível. Quando um usuário que obteve uma outorga não utiliza a água demandada, ela volta ao poder do Estado. Não pode ser transferida para outro usuário, muito menos ser vendida. A finalidade é óbvia: evitar que se crie especulação financeira em torno de um bem público e essencial, evitando a compra e venda de reservas de água.
A lei já tem uma aberração, que é a outorga preventiva. Uma empresa pode reservar para si um determinado volume de água até que seu empreendimento possa ser implantado. Essa outorga preventiva pode ser renovada mesmo quando o prazo expirou sem que nenhuma gota d’água tenha sido utilizada.
Onde o mercado de águas – sob todas as formas – foi criado o fracasso foi mortal, literalmente. Na Bolívia gerou a guerra da água, na França, depois de alguns anos, o serviço voltou ao controle público. Assim em tantas partes do mundo. Mas o Brasil é tardio e colonizado. Muitos de nossos agentes públicos também o são.
Pela nossa legislação existe uma ética no uso da água, isto é, em caso de escassez a prioridade é o abastecimento humano e a dessedentação dos animais. Portanto, prioridades como essas, estabelecidas em lei, não podem ser substituídas pelo mercado. Em momentos críticos como esse, exige-se intervenção do Estado através do organismo competente para determinar a prevalência das prioridades sobre os demais usos.
Porém, se as regras forem mudadas para que passe a prevalecer o mercado, uma empresa de abastecimento de água, para ganhar dinheiro, poderá vender sua outorga — total ou parcialmente — para outra companhia: de irrigação, por exemplo. Nesse caso, sacrificaria as pessoas em função do lucro e da empresa que pode pagar mais pela água.
Portanto, não é só uma questão legal. É, antes de tudo, ética, humanitária e protetora dos direitos dos animais.  A proposta inverte a ordem natural e dos valores, colocando o mercado como senhor absoluto da situação, exatamente em momentos de escassez gritante.
É sintomático que essas observações feitas à Folha de São Paulo não tenham sido publicadas. Apareceram apenas as vozes dos defensores do mercado de águas.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Tristeza não tem fim, biodiversidade, sim...

31/08/2015
por Nurit Bensusan

Todos sabemos que o Brasil é um país de natureza exuberante, um lugar com uma enorme biodiversidade, expressa em números incomuns de espécies de plantas, animais e micro-organismos e em ambientes tão diferentes como a Amazônia e a Caatinga. O Brasil abriga cerca de 20% de todas as espécies vivas do planeta. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, nossa biodiversidade poderia concretizar a ideia de que o Brasil é o país do futuro. Um futuro diferente do presente desigual, injusto e insustentável.

Entre as possíveis oportunidades que essa biodiversidade nos traz está o desenvolvimento de produtos derivados do vasto patrimônio genético que representa. Esses produtos não são apenas novos medicamentos ou cosméticos, mas também tintas, solventes, essências, óleos, produtos de limpeza, biotecnológicos e químicos. E para que os países megadiversos, como o Brasil, possam obter benefícios usando de forma sustentável sua natureza, a Convenção da Biodiversidade (CDB), um dos tratados internacionais assinados na Conferência Rio-92, estabeleceu um mecanismo chamado “repartição justa e equitativa” dos benefícios oriundos do acesso ao patrimônio genético. Trata-se de um nome complicado para uma ideia simples: quem usa algum componente da nossa biodiversidade e, com isso, afere algum lucro, deve dividir esse lucro conosco, o povo brasileiro. Essa divisão deve ser justa e garantir a igualdade de direito entre os envolvidos.

Além disso, a Convenção reconhece a importante contribuição do conhecimento dos povos indígenas e das comunidades tradicionais (ribeirinhos, extrativistas, quilombolas etc) para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade. Por isso, também estipula que haja repartição de benefícios quando esse conhecimento é utilizado para o desenvolvimento de algum produto. Um exemplo disso são remédios desenvolvidos a partir do saber indígena sobre plantas medicinais.

A repartição de benefícios foi uma das grandes inovações da CDB e traz em seu bojo uma excelente ideia: fomentar um uso de base científica e tecnológica dos componentes da biodiversidade, garantindo assim sua conservação. Algo como a galinha de ovos de ouro. Se usarmos um ovinho e os recursos derivados de cada ovo de cada vez, é possível manter a galinha e assegurar que ela continue botando ovos. A concretização dessa ideia, porém, é mais complexa. É difícil controlar e regular o acesso e o uso de componentes da biodiversidade e, ao mesmo tempo, criar mecanismos justos e equitativos de repartição de benefícios.

No Brasil, esse assunto é regulado, desde 2001, por uma Medida Provisória (MP) que não agrada a ninguém. Foram feitas várias tentativas de criar um novo marco legal para o tema, mas todas fracassaram. Por fim, no ano passado, em plena Copa do Mundo, o governo federal enviou ao Congresso um projeto de lei, em regime de urgência, para substituir a MP. O que se viu, então, foi uma tramitação apressada, e nada democrática, de um assunto complexo e votações pautadas por interesses que não são os do povo brasileiro. Os detentores do conhecimento tradicional, povos indígenas e comunidades locais, os pesquisadores e os ambientalistas foram alijados do debate e o texto refletiu apenas os interesses das empresas que usam componentes da nossa biodiversidade e conhecimentos tradicionais a ela associados.

O resultado final emergiu da Câmara dos Deputados, na semana retrasada, e agora está na mesa da presidenta da República para sanção ou veto. Trata-se de uma nova lei que confirma a dificuldade que o Brasil tem em perceber sua biodiversidade como oportunidade, como passaporte para o futuro, e não como maldição da qual quer se livrar.

Nessa nova lei, a União, guardiã – ao menos teoricamente – da nossa biodiversidade, abre mão de quase todas as possibilidades de aferir benefícios com a exploração do nosso patrimônio genético. A repartição de benefícios passará a ser uma exceção ao invés da regra e será sempre pautada pelas escolhas de quem usa e explora a biodiversidade, ou seja, as empresas. Como parte da tristeza sem fim, fica a questão de como a União pode abrir mão de tudo isso em nosso nome, sem sequer nos consultar. Depois de quase 20 anos de debates sobre esse assunto, como podemos acabar com uma lei, aprovada apressadamente, que não trará nenhuma segurança jurídica e prejudicará a todos os envolvidos? Resta a esperança – talvez vã – de que Dilma Rousseff vete alguns dispositivos e torne a nova lei um pouco menos inaceitável, porque torná-la aceitável é agora impossível.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Energia e os possíveis caminhos para 2050


Em encontro promovido para discutir o futuro energético do Brasil, Greenpeace apresenta cenário baseado em energia solar e com nível mínimo de emissão


Ricardo Baitelo, coordenador da campanha de Clima e Energia do Greenpeace, apresentou as projeções da organização para a matriz energética brasileira até 2050
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Num contexto de mudança de produção de energia, a Plataforma Cenários Energéticos (PCE) surge para pensar novos rumos para a matriz energética brasileira nos próximos 35 anos, contemplando os estudos de instituições da sociedade civil. O primeiro encontro público foi realizado hoje, dia 26, em Brasília, com a participação de diversas organizações juntamente com o governo – este último representado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
O Greenpeace foi uma das quatro instituições a apresentar um cenário para a matriz energética brasileira em 2050, baseado em seu estudo de 2013, o [R]evolução Energética. As outras três a exporem seus estudos e projeções foram a COPPE/UFRJ (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a SATC (Associação Beneficente da Indústria Carbonífera de Santa Catarina) e o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica).
Frente ao planejamento ainda em andamento do governo para 2050, as instituições se mostraram muito preparadas e capacitadas em suas exposições, embora vários pontos divergentes entre os quatro cenários tenham embasado a maior parte da discussão.
Dentre os quatro cenaristas, o Greenpeace é o que mais prioriza a energia solar. De modo geral, observa-se que os demais consideram como base da matriz energética do Brasil a fonte hídrica. Mesmo assim, todos os cenários indicam a importância de fontes renováveis como hidroeletricidade, solar e eólica e uma política de energia bastante calcada em eficiência energética.
“Apesar das diferenças entre as projeções, fica claro que o futuro do país depende do desenvolvimento e expansão da energia solar”, explica Ricardo Baitelo, coordenador da campanha de Clima e Energia do Greenpeace Brasil. Porta-voz da ONG no encontro, Baitelo alertou que esse investimento em solar é para ajudar a atender a demanda energética com baixas emissões de gases de efeito estufa, gerando de centenas de milhares de empregos verdes.
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Todos os cenários incluem, mesmo que em distintas proporções, fontes de energia constantes (térmicas, gás, carvão e nuclear), como forma de complementar a intermitência das fontes renováveis predominantes. O cenário do Greenpeace é um exceção: ele não adiciona ao Plano de Obras térmicas a carvão nem usinas nucleares.
As projeções do Greenpeace apresentam uma expansão de fontes térmicas mais moderada em relação aos demais cenaristas, valendo-se apenas de usinas à gás natural enquanto as demais fontes fósseis são na maioria desconsideradas. Essa estratégia de expansão corresponde com o objetivo do Greenpeace de reduzir a emissão de gases de efeito estufa e erradicar os riscos nucleares.
Sobre a geração hídrica, o Greenpeace não inclui em seu cenário hidrelétricas de grande porte ou qualquer que tenha reservatório. A PCE supõe que nos Planos de Obras com grandes hidrelétricas, a área impactada será a Região Amazônica. Diante disso, seria possível interpretar que as matrizes da SATC, COPPE e ITA resultariam em impactos de distintas proporções na região.
“A iniciativa da Plataforma de Cenários Energéticos é extremamente positiva para propor soluções alternativas aos planos governamentais”, atesta Baitelo. Para ele, é essencial aumentar o debate sobre as escolhas necessárias para chegar a 2050 com uma matriz de baixos impactos socioambientais e baixas emissões de gases de efeito estufa.
Fora todo o debate e proposições, no final do evento os participantes pontuaram a necessidade de incentivos e políticas efetivas para o desenvolvimento maciço da energia solar no Brasil, como a desoneração do ICMS e a melhora das condições propostas pela resolução 482/2012 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Fonte: Greenpeace Brasil