31/08/2015
por Nurit BensusanTodos sabemos que o Brasil é um país de natureza exuberante, um lugar com uma enorme biodiversidade, expressa em números incomuns de espécies de plantas, animais e micro-organismos e em ambientes tão diferentes como a Amazônia e a Caatinga. O Brasil abriga cerca de 20% de todas as espécies vivas do planeta. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, nossa biodiversidade poderia concretizar a ideia de que o Brasil é o país do futuro. Um futuro diferente do presente desigual, injusto e insustentável.
Entre as possíveis oportunidades que essa biodiversidade nos traz está o desenvolvimento de produtos derivados do vasto patrimônio genético que representa. Esses produtos não são apenas novos medicamentos ou cosméticos, mas também tintas, solventes, essências, óleos, produtos de limpeza, biotecnológicos e químicos. E para que os países megadiversos, como o Brasil, possam obter benefícios usando de forma sustentável sua natureza, a Convenção da Biodiversidade (CDB), um dos tratados internacionais assinados na Conferência Rio-92, estabeleceu um mecanismo chamado “repartição justa e equitativa” dos benefícios oriundos do acesso ao patrimônio genético. Trata-se de um nome complicado para uma ideia simples: quem usa algum componente da nossa biodiversidade e, com isso, afere algum lucro, deve dividir esse lucro conosco, o povo brasileiro. Essa divisão deve ser justa e garantir a igualdade de direito entre os envolvidos.
Além disso, a Convenção reconhece a importante contribuição do conhecimento dos povos indígenas e das comunidades tradicionais (ribeirinhos, extrativistas, quilombolas etc) para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade. Por isso, também estipula que haja repartição de benefícios quando esse conhecimento é utilizado para o desenvolvimento de algum produto. Um exemplo disso são remédios desenvolvidos a partir do saber indígena sobre plantas medicinais.
A repartição de benefícios foi uma das grandes inovações da CDB e traz em seu bojo uma excelente ideia: fomentar um uso de base científica e tecnológica dos componentes da biodiversidade, garantindo assim sua conservação. Algo como a galinha de ovos de ouro. Se usarmos um ovinho e os recursos derivados de cada ovo de cada vez, é possível manter a galinha e assegurar que ela continue botando ovos. A concretização dessa ideia, porém, é mais complexa. É difícil controlar e regular o acesso e o uso de componentes da biodiversidade e, ao mesmo tempo, criar mecanismos justos e equitativos de repartição de benefícios.
No Brasil, esse assunto é regulado, desde 2001, por uma Medida Provisória (MP) que não agrada a ninguém. Foram feitas várias tentativas de criar um novo marco legal para o tema, mas todas fracassaram. Por fim, no ano passado, em plena Copa do Mundo, o governo federal enviou ao Congresso um projeto de lei, em regime de urgência, para substituir a MP. O que se viu, então, foi uma tramitação apressada, e nada democrática, de um assunto complexo e votações pautadas por interesses que não são os do povo brasileiro. Os detentores do conhecimento tradicional, povos indígenas e comunidades locais, os pesquisadores e os ambientalistas foram alijados do debate e o texto refletiu apenas os interesses das empresas que usam componentes da nossa biodiversidade e conhecimentos tradicionais a ela associados.
O resultado final emergiu da Câmara dos Deputados, na semana retrasada, e agora está na mesa da presidenta da República para sanção ou veto. Trata-se de uma nova lei que confirma a dificuldade que o Brasil tem em perceber sua biodiversidade como oportunidade, como passaporte para o futuro, e não como maldição da qual quer se livrar.
Nessa nova lei, a União, guardiã – ao menos teoricamente – da nossa biodiversidade, abre mão de quase todas as possibilidades de aferir benefícios com a exploração do nosso patrimônio genético. A repartição de benefícios passará a ser uma exceção ao invés da regra e será sempre pautada pelas escolhas de quem usa e explora a biodiversidade, ou seja, as empresas. Como parte da tristeza sem fim, fica a questão de como a União pode abrir mão de tudo isso em nosso nome, sem sequer nos consultar. Depois de quase 20 anos de debates sobre esse assunto, como podemos acabar com uma lei, aprovada apressadamente, que não trará nenhuma segurança jurídica e prejudicará a todos os envolvidos? Resta a esperança – talvez vã – de que Dilma Rousseff vete alguns dispositivos e torne a nova lei um pouco menos inaceitável, porque torná-la aceitável é agora impossível.
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