"Uma
planta que cresce em seu ambiente natural com uma alimentação
equilibrada é resistente a pragas e doenças, porque os organismos
causadores de doenças não terão facilidade em obter os nutrientes de que
precisam. Essa é a base da trofobiose", afirma o bioquímico.
necessidade de grandes produções agrícolas, a Terra começou a ser alterada. “Desde as primeiras
Entretanto, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Loening problematiza esse rompimento de paradigma, que vai além da introdução de outras técnicas de produção agrícola. Para ele, a questão de fundo a ser atacada é cultural. “Passa a ser uma mudança na cultura social,
um modo de vida que procura não subjugar a natureza”, explica. Parece
simples, mas essa sua abordagem muda a perspectiva que se tem hoje com
relação, por exemplo, à ciência.
“A ciência aplicada sobre a qual nossa
civilização está construída, tem raízes culturais profundas. Agora, para
resolver como, onde e se os humanos poderão viver na Terra,
é necessária uma atitude científica nova e culturalmente diferente”,
defende. Assim, chega à sua formulação de “uma ciência que cria tecnologias ecologicamente apropriadas,
que promove a relação de convívio da sociedade com a natureza, que pode
ajudar a superar a antipatia de muitas pessoas contra a ciência e,
acima de tudo, que pode criar uma relação mais convivial entre os seres
humanos e a natureza”. É a sua “Ciência Convivial” como nova forma de apreender as ecologias do planeta.
Ulrich Loening é membro
do Conselho de Administração do Centro de Ecologia Humana (Centre for
Human Ecology), em Edimburgo, na Escócia. Em 1984, presidiu a entidade e
se aposentou em 1995. É doutor em Bioquímica pela Universidade de
Oxford, na Inglaterra. Dedicou-se ao ensino e pesquisa sobre a síntese
de proteínas e ácidos nucleicos, nos Departamentos de Botânica e
Zoologia, na Universidade de Edimburgo até o final da década de 80.
Ele desenvolveu vários métodos de
eletroforese para análise de RNA (em Biologia, o ácido ribonucleico -
sigla em português: ARN e em inglês, RNA, ribonucleic acid - é o
responsável pela síntese de proteínas da célula) e seu processamento e
transporte para o citoplasma e confirmou a ideia emergente que
cloroplastos de plantas evoluíram a partir de simbiose com algas
verde-azuladas - engenharia genética natural. Se diz um interessado por
história natural, jardinagem e agricultura desde criança. Por isso,
acredita que se envolveu com estudos e pesquisas sobre impactos
ecológicos da sociedade.
Confira a entrevista.
Ulrich Loening - Agroecologia
é a filosofia e a prática da agricultura que leva em conta a forma como
a granja ou fazenda se encaixa na ecologia da região. Em contraste com a
agricultura convencional, que tem, na prática,
ignorado ou atalhado processos naturais, a agroecologia tenta aproveitar
processos naturais para produzir alimentos para os seres humanos. Ela
enverga o ecossistema local em favor dos seres humanos, porém não muito.
Por isso, passa a ser uma mudança na cultura social, um modo de vida
que procura não subjugar a natureza.
IHU On-Line - Como compreender a
relação entre o solo e a produção agroecológica? De que forma é
possível tratar o solo enquanto organismo vivo, preservando as inúmeras
formas de vida que nele existem e desenvolver a produção agrícola?
Ulrich Loening - Quase se poderia inverter essa pergunta: como conseguirá persistir a agricultura convencional com grande utilização de fertilizantes e pesticidas,
tendo em vista que ela tem causado perda contínua de solos e
fertilidade? Já desde as primeiras revoluções agrícolas de 10 mil anos
atrás, a agricultura tem perturbado ecologias locais, e agora com
intensidade ainda maior. Métodos de agroecologia visando manter o húmus e os organismos do solo constituem a característica crucial da abordagem proposta.
Mudança na estrutura econômica
A produção seria mais sustentável desenvolvendo métodos de agroecologia,
mas é preciso reconhecer que, no frigir dos ovos, mesmo com essa
mudança de matriz produtiva, talvez não seja possível alimentar a
população humana, que vem crescendo muito. Já agora, a demanda por alimento
no mundo é muito maior do que a agricultura convencional consegue
atender. Ainda não estamos em estado de crise, já que alimento
suficiente vem sendo produzido para alimentar todos, e muitos mais. O
problema no momento é a distribuição precária e a pobreza. Isso exige
primeiro uma mudança nas estruturas econômicas, e essa mudança por si
mesma já poderia incentivar a agricultura mais sustentável e ecologicamente sadia.
IHU On-Line - De que forma é
possível fazer controle de pragas, desde insetos até ervas daninhas, e
produzir alimentos saudáveis apenas trabalhando o manejo do solo? É
nisso que se apoia a Teoria da Trofobiose? Que outras perspectivas a
Teoria abre?
Ulrich Loening - Uma
planta que cresce em seu ambiente natural com uma alimentação
equilibrada é resistente a pragas e doenças, porque os organismos
causadores de doenças não terão facilidade em obter os nutrientes de que
precisam. Essa é a base da trofobiose, termo inventado por Chaboussou [1] em seu livro de 1985 [2]. Mas a agricultura de acordo com a trofobiose
não consegue inibir as ervas daninhas. Afinal de contas, ervas daninhas
são apenas aquelas plantas que nós, incidentalmente, não desejamos, e a
natureza não pode distinguir o que nós casualmente queremos colher. A
interpretação da trofobiose destaca o quanto nossos
métodos agrícolas convencionais, pelo menos desde meados do século 19,
se baseiam em insumos químicos que substituem as formas como as plantas
se nutrem.
IHU On-Line - Em que medida a
compreensão das formas de vida contidas no solo (visto como um espaço
micro de todo o planeta) pode contribuir com o entendimento mais amplo
da biologia humana?
Ulrich Loening - Após dois séculos em que começamos a compreender a ciência da agricultura,
só recentemente é que se está começando a reconhecer o significado da
enorme diversidade da vida no solo. Esta nova compreensão começou com a
descoberta das micorrizas na década de 1880, fungos que crescem em torno
ou dentro de raízes de plantas e liberam nutrientes minerais para a
planta, a qual, em troca, fornece alimento para os fungos.
Este é o maior sistema simbiótico
do mundo e é provável que a vida vegetal na terra não poderia ter
evoluído sem ele. Agora percebemos que milhões de micro-organismos do
solo, desconhecidos em sua maioria, também ajudam as plantas a crescer
de forma saudável. Esse diversificado ecossistema do solo, que tem sido
comparado às complexidades de uma floresta tropical, também afeta
diretamente a saúde humana. De modo semelhante, nosso sistema
gastrointestinal também contém um vasto "bioma", consideravelmente
influenciado de fora.
IHU On-Line - Quais os desafios
para se romper com uma forma de relação mercantil entre o ser humano e a
terra, que se materializa da agricultura baseada no modelo de
agronegócio, e propor uma relação mais ecologicamente integral,
valorizando as pequenas propriedades e produção mais limpa?
Ulrich Loening - Assim
que algo é bem-sucedido, tende a fixar-se e continuar com seu próprio
sucesso. Até mesmo o avanço da civilização exige que formas exitosas de
vida sejam passadas de geração em geração. Apenas quando o sucesso
ultrapassa seus limites num pequeno planeta, surgem problemas. É difícil
alterar a maneira como pensamos, uma vez instalados o mito de Prometeu
[3] de obter o fogo (poder) do céu e a atitude baconiana [4] que lançou
a ciência ocidental ("conhecimento é poder"). Surge a necessidade de mudança em direção a uma relação ecológica. Eu vejo isso como desafio fundamental por excelência.
Em nível mais prático, as pequenas propriedades
("small is beautiful" – o pequeno é lindo) são parte da resposta e,
atualmente, continuam sendo as que produzem a maioria dos alimentos que
realmente chegam à mesa. Mas as pequenas propriedades também precisam
ficar intimamente conectadas com sua situação ecológica, em vez de
combatê-la. Elas precisam basear-se em ciclagem de materiais, com
estreitos laços dos seres humanos com a granja, que permitem o cultivo
"dedo verde". O/A agricultor/a, suas ferramentas e métodos, e o entorno,
todos são parte do ecossistema local. Uma relação comercial de grande
porte não consegue fazer justiça a esse fato, e assim torna-se
insustentável.
IHU On-Line - Qual o papel dos
governos no estímulo à agroecologia? Como avalia o desempenho de
organizações civis, como cooperativas, da promoção desse estilo de vida e
produção agroecológica?
Ulrich Loening - Políticos em geral não entendem de ecologia humana,
talvez nem o consigam. Eles operam baseados no princípio de que
sistemas financeiros eficazes no curto prazo conseguem satisfazer nossos
desejos, e partem do princípio de que se algo parece bom, então mais do
mesmo deve ser melhor. Mas nosso mundo, superlotado desse princípio,
perde sua validade, empresas gigantescas do agronegócio rompem as
ligações ecológicas e sociais que as pequenas propriedades produtivas
podem ter.
A política da maioria dos governos e federações, como os Estados Unidos e a União Europeia,
tem sido a de incentivar positivamente grandes fazendas, grandes
empresas de suprimentos e cadeias alimentares mais longas e mais
complexas. Tais políticas só podem levar a um distanciamento maior em
relação às realidades ecológicas. Isso, por sua vez, faz com que
empresas, mais do que os governos, governem o mundo e determinem as
políticas a serem seguidas. Vemos isso agora nas negociações (a portas fechadas) para o TTIP [5], acordo de comércio internacional
proposto entre a União Europeia e os Estados Unidos, que ameaça
incentivar grandes corporações no sentido de controlar as políticas
nacionais distantes.
Os governos têm, claramente, um papel primordial de impedir isso, assim como eles normalmente não têm deixado que monopólios
interfiram no livre comércio. Provavelmente alguma forma de
protecionismo é necessária, que permita desenvolvimentos locais livres
de interferência externa. Obviamente este argumento econômico tem
implicações sociais diretas. A liberdade individual de escolha é
reprimida por grandes corporações, assim como tem sido reprimida por
ditaduras totalitárias, em algumas partes do mundo.
IHU On-Line - A continuidade e
crescimento da civilização pode ser compatível com a sustentabilidade
ecológica global? Como articular a ideia local de sustentabilidade com a
causa global?
Ulrich Loening - Esta foi a questão abordada e até certo ponto respondida pelo Relatório sobre os Limites do Crescimento elaborado para o Clube de Roma
em 1972 [6]. A resposta é que não, que se continuarmos business as
usual, chegaremos a um impasse. À medida que a civilização evolui, ela
também precisa desenvolver-se no sentido de "adequar suas ações aos
padrões da natureza", como indicou a Comissão Brundtland
[7] em suas declarações de abertura em 1987. A próxima grande ideia
social e científica trataria de tornar a civilização compatível com as realidades planetárias
[8]. Resolver essa contradição exige uma visão global com ação local,
coisa difícil de se conseguir, que em si precisa evitar o sofrimento
causado pelas falhas das grandes corporações. Mas agora podemos ver novas atitudes emergindo, com grande número de pessoas da maioria dos países ansiando por melhorias.
IHU On-Line - Quais os impactos
das diferentes civilizações tecnológicas nas formas de vida do planeta?
Como isso repercute na agricultura?
Ulrich Loening - É notável que a "ciência" no sentido moderno surgiu na Europa, e não na China, apesar de sua antiga civilização, nem em países budistas, embora Buda
[9] tenha aconselhado que "nada vem de mão beijada". Agora, esta
atitude científica inicialmente europeia passou a permear o mundo
inteiro. Talvez seja o momento de a Europa mais uma vez desencadear um
novo Esclarecimento [ou Iluminismo] cultural/científico. Diferentemente
de outros tempos, pode-se procurar soluções e sabedoria entre povos
menos aculturados, cuja cultura tenha sobrevivido em alguns lugares. O
conceito de "The Way" [10] (livro de Edward Goldsmith [11]), visando desenvolvimento com equidade social e ecológica de antigas raízes, pode fornecer um ethos para uma nova síntese.
IHU On-Line - No que consiste a
ideia de “tecnologia apropriada” e qual sua relação com as formas de
vida integrais, como a agroecologia?
Ulrich Loening - Tecnologia apropriada muitas vezes tem sido confundida com a "tecnologia intermediária" preconizada por Schumacher
[12]. Eu considero apropriado aquilo que se adéqua à situação.
Excelente exemplo são tecnologias que aproveitam energia do ambiente,
que em última análise emana do sol e continua emanando, quer a usemos ou
não. Se cobrirmos nossas necessidades de energia a partir desse fluxo,
então é apropriado. Da mesma forma, a agricultura que
se encaixa nos ciclos da natureza (e não apenas nas estações do ano, mas
nos fluxos materiais e biológicos) conseguirá atuar e funcionar de
forma sustentável. Nossa oferta de alimentos deve vir dos fluxos de
nutrientes e organismos ao longo do ecossistema, causando o mínimo possível de diferenças, sejam usados ou não.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Ulrich Loening - Sim! Se somar tudo que argumentei acima, e outros estudos não incluídos aqui, você só pode chegar a uma conclusão: que a ciência
aplicada sobre a qual nossa civilização está construída tem raízes
culturais profundas. Agora, para resolver como, onde e se os humanos
poderão viver na Terra, é necessária uma atitude científica nova e
culturalmente diferente. Eu não quero dizer um método científico novo ou
diferente, porque é autocriado pelo senso comum lógico, mas uma nova
abordagem sobre a forma de aplicar a ciência e sobre sua motivação. Eu gosto de promover um nome para esta nova ciência: "Ciência Convivial". Deriva de “con-vivo”, que significa "com vida" [sic]. Ciência Convivial
pode ser usada em muitos sentidos: é uma ciência que cria tecnologias
ecologicamente apropriadas, que promove a relação de convívio da
sociedade com a natureza, que pode ajudar a superar a antipatia de
muitas pessoas contra a ciência, e, acima de tudo, que pode criar uma relação mais convivial entre os seres humanos e a natureza.
Por João Vitor Santos | Tradução Walter O. Schlupp
Nenhum comentário:
Postar um comentário