O que o Congresso está votando hoje não são apenas algumas emendas
constitucionais: ele está votando às pressas, sem debate com a
sociedade, sob pressão de uma massiva campanha de propaganda e com apoio
da grande mídia, uma nova Constituição. A maioria dos parlamentares
está votando não com a sua consciência, mas com "incentivos" oferecidos
pelo governo: isto é o que explica que o governo tenha uma maioria
tranquila para aprovar seus projetos", constata Ivo Lesbaupin, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e coordenador da ONG Iser Assessoria, do Rio de Janeiro.
Segundo ele, "para enfrentar a crise, exige-se, supostamente, a
contribuição de todos: “cada um tem de fazer a sua parte”. Mas não: só
se está cobrando da parte mais pobre da sociedade, da maioria. Dos mais
ricos, dos 5% mais ricos da população, não se pede nada, não se cobra
nada: nem imposto sobre lucros e dividendos, nem taxação de grandes fortunas, nem contribuição sobre transações financeiras. Ao contrário, eles ficarão mais ricos".
Ivo Lesbaupin,
doutor em Sociologia pela Universidade de Toulouse-Le-Mirail, França, é
autor e organizador de diversos livros, entre os quais O Desmonte da nação: balanço do governo FHC (org., 1999); O Desmonte da nação em dados
(com Adhemar Mineiro, 2002); Uma análise do Governo Lula (2003-2010):
de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (2010).
Eis o artigo.
O processo a que estamos assistindo é a elaboração, sob as nossas
barbas, de uma nova constituição, que joga a Constituição Cidadã no
lixo. A Constituição de 1988,
que tinha a missão de eliminar de vez o entulho autoritário e
estabelecer bases democráticas para a nação, foi elaborada com intensa
participação de cidadãos e cidadãs, durante mais de dois anos. Foi
elaborada em amplo processo de negociação em que tomaram parte todos os
setores da sociedade, parlamentares, partidos políticos, organizações da
sociedade civil, movimentos sociais, indivíduos. Foram apresentadas 120
propostas de emendas populares, reunindo 12 milhões de assinaturas e,
não custa lembrar, não havia internet nem celular.
A nova constituição está sendo elaborada por encomenda de um governo
ilegítimo e eivado de corruptos, inaugurado a partir do impedimento de
uma presidente eleita pelo voto popular, impedimento, diga-se com todas
as letras, sem crime de responsabilidade. Um governo ilegítimo que é
aprovado por menos de 10% da população. Está sendo aprovada a toque de
caixa por um Congresso onde mais da metade dos parlamentares está sob
suspeita de corrupção,
improbidade administrativa, recebimento de propinas ou caixa 2. Mais da
metade dos parlamentares foi eleita com recursos de empresas (bancos,
empreiteiras ou outras empresas, inclusive do agronegócio): tais
políticos não representam os interesses de seus eleitores e, sim, os
interesses de seus “compradores” (os financiadores de suas campanhas).
O governo tem enviado ao Congresso projetos de lei que revogam os direitos presentes na Constituição de 1988, o direito ao trabalho, o direito à proteção social, o direito à saúde, o direito à educação.
Veja-se o artigo 1º da Constituição de 1988:
"A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
I –a soberania;
II –a cidadania;
III –a dignidade da pessoa humana;
IV–os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V–o pluralismo político.
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
E o artigo 6º:
"São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição". (EC no 26/2000 e EC no 64/2010)
Não se trata apenas dos direitos que constam da nossa Constituição, trata-se dos direitos humanos fundamentais, aqueles que fazem parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 1948!).
Veja-se o artigo 23, parágrafo 1º, por exemplo:
“Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a
condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o
desemprego”.
Ou o artigo 25:
“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe
assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à
alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda
quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no
desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros
casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes
da sua vontade”.
Nenhum destes direitos ficará de pé com a entrada em vigor da PEC 55, a PEC do Teto dos Gastos (também conhecida como “PEC do Fim do Mundo” ou de “PEC da Morte”) ou com a lei da “terceirização universal” recentemente aprovada, com a reforma trabalhista ou com a reforma da Previdência
que o governo pretende fazer votar. Os direitos sociais promulgados em
1988 estão sendo simplesmente descartados, supostamente para enfrentar a
grave crise econômica por que estamos passando. Mas esta retirada de
direitos não resolverá a crise econômica, apenas transferirá uma boa
parte dos salários, aposentadorias e pensões da maioria da sociedade,
dos trabalhadores, da classe média e dos mais pobres, para os mais
ricos, para a elite. Para a maioria, a crise só vai aumentar.
O que o Congresso está votando hoje não são apenas algumas emendas
constitucionais: ele está votando às pressas, sem debate com a
sociedade, sob pressão de uma massiva campanha de propaganda e com apoio
da grande mídia, uma nova Constituição. A maioria dos parlamentares
está votando não com a sua consciência, mas com "incentivos" oferecidos
pelo governo: isto é o que explica que o governo tenha uma maioria
tranquila para aprovar seus projetos. Como diz a imprensa em sua
linguagem rebuscada: o Congresso se tornou um “balcão de negócios” (com
recursos públicos). Quando não se consegue o número suficiente de votos
favoráveis, oferece-se um pouco mais e os votos mudam.
É este o país livre da corrupção que se queria? Com os parlamentares sendo corrompidos
à luz do dia (ou melhor, à luz da noite)? Como é que um grupo de
parlamentares vota uma matéria com uma posição e, no dia seguinte, sobre
a mesma matéria, toma a posição contrária? O que se passou nesta noite
para que o voto mudasse? E aquilo que aprovaram vai virar parte da nossa
nova Constituição?
Para enfrentar a crise, exige-se, supostamente, a contribuição de
todos: “cada um tem de fazer a sua parte”. Mas não: só se está cobrando
da parte mais pobre da sociedade, da maioria. Dos mais ricos, dos 5%
mais ricos da população, não se pede nada, não se cobra nada: nem
imposto sobre lucros e dividendos, nem taxação de grandes fortunas, nem
contribuição sobre transações financeiras. Ao contrário, eles ficarão
mais ricos.
Os brasileiros não vão ser consultados sobre as leis que seus
“representantes” estão aprovando? É legítimo mudar a Constituição, a Lei
Maior do país, sem um referendo? Sem debate público?
Que democracia é esta, em que o soberano – o povo – não é chamado a decidir nem a opinar sobre o que estão decidindo em seu nome?